domingo, 20 de setembro de 2015

Que horas ela volta? (The second mother, 2015)

Pela primeira vez escrevo o nome do filme em português e em parênteses em inglês. Faço isso com orgulho porque o novo filme de Anna Muylaert, que vem conquistando público no país, só começou a engrossar sua bilheteria após anúncio de ser o candidato ao Oscar de filme estrangeiro, feito dia 10. O longa faz "carreira internacional" desde o início do ano, sendo lançado em vários países com o nome de "A segunda mãe". Além disso, já recebeu prêmios de melhor atuação para Regina Casé, no Festival de Sundance, de crítica e de público no Festival de Berlim e de melhor filme no Festival de Amsterdã. Não dá pra deixar de nos indagarmos porque uma comédia supostamente despretensiosa anda conquistando tanto público lá fora.

Regina Casé como Val, a "segunda mãe" de Fabinho (Michel Joelsas)
Receber tantos prêmios e ser lançado em vários países me deixa um tanto quanto orgulhosa, uma vez que são poucos os filmes nacionais que têm tido sucesso de público no exterior e no país simultaneamente. Mas conquistar público nas salas nacionais, quando o filme tem uma estética inovadora ou uma temática social, também é algo para se comemorar, mesmo que sua fama tenha precedido o público. É interessante entender, também, o porquê disso.

O longa conta a história de Val (Regina Casé), que é a empregada doméstica/babá da família de Bárbara (Karine Teles), uma publicitária ou especialista em moda, cuja profissão não fica claro na história. Val é nordestina, vive no trabalho e visita pouco a filha e a família, com quem conversa via telefone quase todos os dias. Val é o retrato de muitas mulheres que trabalham em casas da classe média alta ou alta em São Paulo e no Rio de Janeiro. E é em São Paulo que encontra um "novo filho", o filho da patroa. Não é à toa que na maioria dos países o filme ganhou o nome de "A Segunda Mãe". É Val quem cuida do filho de Bárbara, Fabinho (Michel Joelsas), quem educa, que é cúmplice dele, que pergunta sobre a vida dele e quem o mima antes de dormir. Val é a mãe que Fabinho não teve.

Uma cena simples e bonita do filme - Val tem um cotidiano fechado.
Pegar um sol no quintal é uma das coisas que ela tem prazer de fazer
Com o passar do tempo, Fabinho cresce e se torna um adolescente amoroso. Pouca coisa muda na vida dela e no cotidiano da casa. Um belo dia Val recebe um telefonema da filha dizendo que ela está indo para São Paulo tentar o vestibular. Sem saber ao certo o que fazer com a filha que conhece pouco, Val conversa com a patroa que diz que ela "é praticamente família", e que a filha pode vir à vontade ficar na casa. Compra até um colchonete para ela dormir no quarto de empregada com a mãe. Quando Jéssica (Camila Márdila) chega na casa, os conflitos começam a ocorrer. E não é só o cotidiano separado dos patrões e empregados mostrados na trama que a deixa interessante, mas o conflito gerado por uma menina adolescente que chega em uma casa e é chamada de convidada, mas pela patroa, é vista como empregada. Essa dinâmica de estabelecimento de papéis claros na casa de Bárbara faz com que surjam diversos problemas, e faz com que Val, a grande protagonista da trama, comece também a questionar algo que para ela nunca foi questionável.

Val e a filha, Jéssica (Camila Márdila), discutindo sobre o uso da piscina
O filme traduz, assim, uma situação social que já vimos ou vivenciamos no Brasil. Não dá pra dizer que não vimos. O conflito de classes na relação de subalternidade que se estabelece no país desde as senzalas e a escravidão, permanece em muitos lares, de forma velada, passivo-agressiva e com muito preconceito embutido. Muito mudou na relação empregada doméstica/patroa? Sim e não. Em muitos lares a mesma relação permanece, de forma velada. Só que nos acostumamos com isso. O filme, na verdade, nos faz ver nossa sociedade. Que história é esse que não podemos lavar um copo, é tarefa da empregada ou diarista? E arrumar a cama, é tarefa também da empregada? Colocar o prato na pia da cozinha, jantar na mesa da cozinha...isso tudo reflete uma situação que todos já vimos: a desigualdade social nas casas brasileiras desde o século XIX, que se desenvolve de forma espacial. E esse é um dos motes do filme, como exemplo, na cena em que a própria patroa de Val deixa claro, após ficar irritada com os "abusos" de Jéssica, que subverte a ordem local: ela deve ficar "da cozinha pra lá, pros fundos da casa".

Val na cozinha - onde a maior parte das cenas é filmada
Que horas ela volta? traz, assim, um interessante retrato do Brasil, um que achamos que já tínhamos esquecido nesse século XXI, mas que existe na nossa sociedade. O forte do filme, porém, não é só a sua crítica social. O outro forte do filme tem nome e sobrenome: Regina Casé. Ela apresenta uma composição de personagem incrível, marcante, contida e forte ao mesmo tempo, um retrato de uma mulher trabalhadora, humilde, isolada em sua vida penosa, que começa a perceber, nas situações e nos diálogos com a filha, que seu mundo poderia ser maior. Val é extremamente empática, é engraçada, e é uma personagem contida, sem grandes explosões. Casé está brilhante - e não dá pra dizer que não conhecemos o potencial dela pra comédias - neste caso, claramente um drama com pitadas de comédia. O elenco de apoio na trama - todos os membros da família de Bárbara, os empregados da casa, a sua filha e sua amiga, também empregada doméstica, estão todos muito bem também. O trabalho de direção está ótimo, a composição, os diálogos e a continuidade da trama, também. Mas quem é a estrela, sem dúvida, é Casé.

A família de Barbara à mesa, esperando Val tirá-la
Posso dizer que o longa é imperdível, e vale muito a pena ser visto. Não só pela suposta concorrência ao Oscar, mas porque precisamos parar de ter aquela velha visão de que o cinema nacional é inferior ao cinema estrangeiro. Faço ainda uma mea culpa: preciso escrever mais sobre filmes nacionais neste blog, e ver mais os filmes nacionais. Acreditem, estamos fazendo escola, e já há muito tempo.




domingo, 6 de setembro de 2015

Para sempre Alice (Still Alice, 2014)

Ontem vi um filme que estava querendo ver há um tempo. Still Alice, em inglês, ou Para sempre Alice, é um filme dramático que é triste e, ao mesmo tempo, nos faz compreender com bastante profundidade o drama das pessoas que têm Alzheimer. Ou seja, por mais que seja triste, é um filme "must see", que devemos ver, não só pela sua história tocante e realista mas como pela atuação de Juliane Moore que é brilhante no longa.

Juliane Moore é a estrela de Para sempre Alice
Para sempre Alice conta a história de Alice Howland, uma professora de linguística da prestigiada Columbia University que tem uma vida muito boa, ativa, dezenas de artigos e livros publicados, um marido que é professor na mesma universidade com quem tem um relacionamento perfeito, e três filhos crescidos. Tudo está indo bem, ou "normal" na vida de Alice, até ela ter apagões, esquecer nomes, lugares, objetos. Ao procurar um neurologista, descobre que tem Alzheimer precoce, um tipo raro da doença que acomete milhares de pessoas no mundo. A partir daí começa a jornada de Alice de auto-descoberta, na busca por respostas para sua doença e de como lidar com ela.

O longa trata, assim, do drama de pacientes com Alzheimer que têm uma jornada dura de esquecimento de pessoas, de forma degenerativa e gradativa, até muitas vezes esquecer-se de tudo e de todos. Como fazer para manter a sua qualidade de vida? Como fazer para compartilhar boas lembranças ou curtir os entes queridos quando você não consegue mais se lembrar quem é ou quem são eles? E como a família faz para superar a tristeza de perder aos poucos as conversas, memórias compartilhadas, com o ente querido?

Moore e Alec Baldwin, em uma atuação comovente
Claro que todos conhecemos a doença, mas creio que só quem passou por esta experiência com um ente sabe a luta que é conviver com ela. Nunca aconteceu comigo, mas relatos de amigos, informações na internet, além de artigos jornalísticos nos faz ter apenas, creio eu, uma ideia, um relance do que é conviver com pessoas que tem a doença. A luta por tentar criar mecanismos de lembranças, e principalmente, para não se perder e esquecer quem é, se torna uma luta pessoal de Alice.

O longa retrata o drama de forma muito aberta, para falar a verdade, mas muito delicada. O drama de Alice é o drama de muitas pessoas, e ela conscientemente sabe o que vem pela frente. Criar os mecanismos de lembrança, seja com lembretes, com mensagens de celular, buscando voltar a locais do passado, vendo vídeos, são formas de manter viva a Alice que ela se lembra. Mas, como toda pessoa consciente de sua doença, ela sabe que o dia em que não se lembrará de mais nada irá chegar. E nós, os espectadores, também percebemos isso gradualmente na trama.

Alice em uma das suas aulas
A direção de Para sempre Alice ficou a cargo dos seus próprios roteiristas, Richard Glatzer e Wash Westmoreland. Glatzer faleceu dias após a cerimônia do oscar. Ele sofria de esclerose lateral amiotrófica, doença que paralisa membros e como Alzheimer, é degenerativa. Alguns críticos dizem que Glazer tentou mostrar a perspectiva dos que sofrem com Alzheimer a partir do seu próprio drama pessoal. Outros que o roteiro estava pronto quando ele descobriu a doença, que acabou que ele se dedicasse mais ao projeto devido à rapidez da doença. De um jeito ou de outro, a delicadeza e o realismo presentes no filme ao mesmo tempo se devem tanto ao roteiro fiel dos autores em relação à doença retratada no longa, como pela atuação dela, especialmente, que está perfeita no papel. 

O filme conta ainda com a participação de Alec Baldwin como John, o marido de Alice, Kate Bosworth como Anna e Kristen Stewart como Lydia, filhas da personagem. O destaque está para Kristen, que se torna a filha mais presente durante a doença da mãe, apesar de claras divergências entre as duas mostradas no início do longa. Porém, creio que os personagens da trama são simplesmente arrebatados pela performance de Moore, que merecidamente levou o Oscar de melhor atriz neste ano pelo longa.

Kristen Stewart faz a filha mais nova de Alice, que se aproxima dela na doença
Para sempre Alice é, para mim, um filme dramático bem escrito, bem dirigido, bem feito, e mais que tudo, um filme importante. Importante porque retrata o cotidiano de pessoas que sofrem de uma doença que ainda é tratada como "demência" por muitos, ainda pouco conhecida por quem não a vivenciou em parentes, e esquecida por acometer pessoas com mais idade. Este não é o caso de Alice, ainda nos seus cinquenta anos, mas também não importa a idade que a doença se desenvolve. É importante tratá-la desde o início e compreendê-la com humanidade. Um filme tem um alcance incrível ao relatar dramas sociais, e neste caso, Glazer e Westmoreland conseguiram dar voz a milhares de pessoas com a doença, médicos, parentes e amigos de pacientes com Alzheimer, que não são compreendidos pelo mundo afora. Neste sentido, Para sempre Alice é fundamental para nos conscientizar da necessidade de se entender as pessoas que sofrem de Alzheimer com um pouco mais de clareza e, principalmente, humanidade.

sábado, 15 de agosto de 2015

A Delicadeza do Amor (La Délicatesse, 2011)

Faz tempo que não escrevo no blog. Faz tempo também que não vejo um filme que me chama a atenção por sua história simples e humana, ao definir diversas formas do amor. O filme A delicadeza do amor não poderia ser mais feliz em seu nome - ou, em francês, baseado em livro homônimo de David Foenkinos, La Délicatesse (a delicadeza), que transborda do início ao fim do filme.

Audrey Tauton como Nathalie, personagem principal
 A delicadeza do amor conta a história de Nathalie (Audrey Tauton), uma jovem francesa cuja profissão é desconhecida do início ao fim do longa, e que no auge de sua juventude está perdidamente apaixonada por François (Pio Marmai), seu namorado de longa data. François, por sua vez, também é apaixonadíssimo por Nathalie e os dois formam um par perfeito, até que um dia o destino os desune: François morre em um acidente, e Nathalie se vê perdida e sozinha no mundo.

A partir deste início alegre e em poucos minutos triste, o longa começa a dar a nuance que faz jus ao seu nome: a delicadeza das diversas formas de amor que existem, seja de Nathalie, que se vê perdida sem François e se fecha em seu luto, à mãe dela, que não sabe o que fazer para agradar a filha, à melhor amiga, Sophie (Joséphine de Meaux), que em uma atuação com uma sensibilidade enorme acompanha Nathalie com cautela e muito amor na sua jornada para refazer a vida. Por fim, ainda aparecem no longa outras formas de amor romântico: o chefe apaixonado e não correspondido e, finalmente, o colega de trabalho, Markus (François Damiens), que com muita sensibilidade busca conhecer Nathalie, em encontros e desencontros pouco previsíveis.

François Damiens como o desengonçado Markus, excelente no papel
 Audrey Tauton, como sempre, consegue fazer personagens fortes e sensíveis de uma forma especial, o que a transformou em uma verdadeira referência do cinema contemporâneo francês. Por sua trajetória em longas românticos, além do brilhante O Fabuloso Destino de Amélie Poulain que a lançou ao estrelato mundial, Audrey ficou conhecida por ser uma atriz delicada e forte ao mesmo tempo - o que acaba tornando este papel perfeito para a atriz. François Damiens também convence enormemente como o desengonçado e simpático colega de trabalho sueco de Nathalie, que por acaso (e o acaso faz parte do filme desde o início) se vê apaixonado por ela e ela intrigada com ele. Preterido por todos por seu jeito estranho e sua aparência nada galante, François é um homem grande e também delicado, e que se sente apaixonar por Nathalie com muita cautela, com medo da dor que poderia se seguir ao não ser correspondido.

Nathalie, no longo caminho para reconstruir sua vida
 O longa se ancora, assim, nestes dois personagens, apesar de todos os coadjuvantes do filme serem fundamentais para entender melhor estes dois personagens. O longa conta também com um inusitado roteiro, como, por exemplo, o medo constante de Markus que faz com que ele simplesmente fuja dela em uma cena divertida e, ao mesmo tempo, compreensível metaforicamente. Quem nunca teve medo de se apaixonar?

Nathalie e Markus, um casal adorável, mas visto no longa como improvável
 As cenas finais do filme são de uma poética incrível, mas que não vale a pena contar aqui, senão todos perderiam o prazer de ver um filme que, do início ao fim, prima pelo inesperado e pela reconstrução, lenta e gradual, da vida de Nathalie. O longa é uma ode sensível ao amor incondicional, em suas diversas facetas e nuances.

domingo, 15 de março de 2015

O Despertar de Rita (Educating Rita, 1983)

Em homenagem ao aniversário de Michael Caine, resolvi escrever uma crítica que tinha me prometido há um bom tempo sobre um filme relativamente antigo dele (dois anos mais novo que eu!) que achei fantástico. Em inglês, seu nome é "Educando Rita" e em português o filme recebeu o nome de O Despertar de Rita, apesar da peça na qual ela se baseia (de Willy Russel) ter sido traduzida como Educando Rita na nossa língua. O filme me tocou muito, não só por ser bastante delicado ao tocar nas questões de relacionamento, diferenças de classes e as trocas de conhecimento na educação, como também por mostrar dois atores excelentes (Michael Caine e a também incrível Julie Walters) contracenando uma peça que, transformada em filme, não perdeu suas características dramáticas.

Julie Walters e Michael Caine como Rita e Prof. Frank Bryant

Sir Michael Caine é um ator de várias facetas, um dos melhores de sua geração, talentoso e com certeza galanteador em seus tempos de Alfie (1966), mas com uma potência teatral incrível, como muitos atores britânicos. Ver filmes com Caine para mim é um prazer. É o tipo do ator cujos filmes procuro assistir, como se tivessem um certo "selo de qualidade". Alguns mais comerciais marcaram sua carreira, mas outros são tão poderosos que você começa a amar a arte de interpretação e se questionar "como pode um ator ser tão brilhante e realista em cena?" Muitos com certeza amaram sua atuação em O Americano Tranquilo (2002, outro filmaço dele), filme relativamente mais recente que ele protagoniza. Outros ainda o lembram em Hannah e suas irmãs (1986), de Woody Allen, que lhe rendeu também um Oscar pela atuação incrível.

Caine interpreta brilhantemente o professor de literatura antipático
 e alcóolatra que se torna tutor de Rita

O Despertar de Rita é um longa que, por se basear em um roteiro de peça teatral, tem como características diálogos intensos entre os dois protagonistas da trama, Frank Bryant (Caine), professor de literatura inglesa, e Rita (Walters), uma cabelereira de origem humilde que busca na universidade aberta se aprimorar nos estudos e na leitura de clássicos da literatura. Com sotaque puxado devido à sua criação em bairro trabalhador (o chamado cockney), e procurando dar algum sentido maior à sua existência que não perpasse as questões práticas e simples do cotidiano, Rita busca o conhecimento, com o sonho de estudar e, quem sabe, se formar em literatura e escrever romances. Na universidade, Bryant, um professor considerado brilhante mas tomado pelo alcoolismo e desiludido com a vida, é praticamente forçado a aceitar a aluna, uma vez que sua atitude irascível é vista com temor pelo departamento e lhe restam poucas opções para continuar ativo no mesmo, como ser tutor de Rita. 

Rita e sua busca pelo conhecimento - e autoconhecimento 

Desta forma se inicia o longa, que vai ganhando a nossa atenção a cada cena contracenada por estes dois protagonistas. Muito comparado a Pigmalião e, claro, My Fair Lady, O Despertar de Rita tem a clareza desta inspiração, mas se propõe a mais que isso. Não há apostas nem obviedades na relação entre os dois protagonistas. As tensões surgem e diminuem com o aumento da afetividade dos dois, e a profundidade dos diálogos tira o aspecto paternalista presente em My Fair Lady. O longa retrata o desenvolvimento de Rita como uma pessoa com maior auto-estima, e de Bryant também, abalado por uma desilusão amorosa e, consequentemente, acadêmica.

Uma parte interessante do longa é decisivamente a vida de Rita fora do campus da universidade. Casada com um eletricista, sua família vive do trabalho para pubs e para casa, e seu pai a pressiona para ter logo um filho. Em um diálogo interessante entre pai e filha, o pai a questiona por ter vinte e sete anos, ser casada há seis e sem nenhum filho, sendo que sua irmã mais nova já estava grávida. Rita ignora os clamores do pai e adia a decisão da gravidez por desejar ainda estudar antes de criar família, e não cair no mesmo círculo vicioso que suas amigas e irmã. 

Walters e Caine passeando pelo campus universitário

Claro que a decisão de Rita propõe uma tomada de consciência de sua vida, em uma atitude autônoma de buscar o conhecimento e crescimento pessoal, e uma visão bastante idealizada de um futuro o qual ela ainda não conhece. Neste conflito pessoal, Rita encontra no professor, que resiste em lhe ensinar, um desafio, pois para ela, ele tem justamente tudo o que ela luta para conseguir, mas não valoriza. Com o tempo, os dois passam a ter um entendimento e compreensão mútua da vida de cada um e a respeitar cada um. Rita percebe que muitas vezes a idealização do futuro pode não trazer a felicidade plena - como não o fez para ele. Da mesma forma, a vida dela passa a ser conhecida por Bryant, que vê as angústias da aluna em tentar se afirmar junto à família, que não vê sentido no interesse de Rita pelos estudos.

Escrito por Willy Russel e dirigido por Lewis Gilbert (que fez parceria com Caine em Alfie, sendo indicado a vários prêmios, e com Willy Russel novamente em Shirley Valentine), o longa foi indicado a quase todos os prêmios principais de cinema em 1984, tendo ganhado Bafta de melhor filme, ator e atriz neste ano. Julie Walters ainda ganhou o Globo de Ouro por sua primeira performance no cinema, e foi indicada ao Oscar, assim como Caine. O longa debate um tema interessante e a busca pelo autoconhecimento - de ambos os protagonistas. É um filmaço para ser visto e revisto (eu revi assim que assisti pela primeira vez) , além de não trazer nenhum final convencional como filmes hollywoodianos. 

Mais uma vez os dois protagonistas do longa


O Despertar de Rita é um filme para assistir, refletir e pensar na complexidade da vida e nos caminhos que ela nos traz - e como nós mesmos somos responsáveis por estes caminhos. Pra terminar, em um diálogo emblemático no filme, Rita diz a Bryant, ao falar sobre seus estudos: "estou começando a me achar. Está sendo ótimo" ("I'm begginning to find me. It's great") E esse é o mote do filme, na minha opinião: o caminho para o autoconhecimento, para ambos os personagens.




domingo, 15 de fevereiro de 2015

Whiplash, em busca da Perfeição (Whiplash, 2014)

Com a proximidade do Oscar estreiam vários filmes interessantes nos nossos cinemas, filmes que ao longo do ano raramente entram em cartaz em grande circuito. Whiplash é um desses filmes que, com certeza, não fosse a indicação ao Oscar, entraria em pequeno circuito, devido à sua temática e à forma como foi filmado. Whiplash é um filmaço - e quem é amante da música, especialmente do jazz, vai se deleitar com este longa sobre um jovem baterista tentando se estabelecer como musicista de jazz em uma escola tradicional em Nova York.

Miles Teller interpretando Andrew em Whiplash

O longa, escrito e dirigido por Damien Chazelle, traz no seu enredo, focado na relação conflituosa, tensa e intensa entre duas pessoas (o jovem Andrew, interpretado por Miles Teller, e um renomado professor da Escola Shaffer, interpretado brilhantemente por J.K. Simmons) uma força incrível. O longa retrata um duelo entre o egocêntrico e renomado professor Fletcher, e seu pupilo, fã de Buddy Rich, desconhecido e fascinado com um mundo da música que sempre sonhou em participar.

Damien Chazelle escreve um roteiro extremamente apaixonante, o qual nos faz identificar com os sacrifícios do jovem e nos chocar com o ego exacerbado do professor, que humilha, faz piadas preconceituosas e pressiona seus alunos até eles terem um verdadeiro "breakout" ou "break down": ou se tornam perfeccionistas na arte de tocar instrumentos ou chegam à beira da loucura, em um abismo de depressão.

J.K. Simmons com Teller em um dos ensaios

É importante ressaltar que com um roteiro tão intenso esses dois personagens se destacam bastante, e não podiam ter escolhido melhor ator para fazer o professor carrasco de música Fletcher do que J.K. Simmons. Abocanhando vários prêmios ao longo do último ano, é o nome certo para ganhar Oscar de melhor ator coadjuvante no longa. Sua interpretação é artística, até brilhante, e pode-se dizer quase perfeita. J.K. Simmons arrebata o público demonstrando que o extremismo pode levar as pessoas a uma brilhante perfomance nos palcos, mas também a um fracasso estrondoso. E mostra, também, que esta linha é tênue.

J.K. Simmons, brilhante no papel do Maestro Fletcher
Miles Teller, por sua vez, ator que debutou junto à Shailene Woodley em Spectacular Now, filme extremamente interessante, com bom roteiro e bem dirigido, após alguns filmes mais comerciais demonstra que veio ao cinema escolhendo bons papéis, e pode ser que daqui a alguns anos ele mesmo seja um ator premiado e renomado em Hollywood. Ele está seguro no papel, mas claro, a grande estrela do filme é Simmons (apesar de ser o coadjuvante, e Teller o principal).

Sobre o enredo, alguns críticos chegaram a comparar o longa com Cisne Negro. Até mesmo vendo o filme deu para fazer essa comparação. O longa se parece sim, mas ao mesmo tempo traz uma temática diferente por abordar o mundo da música, e especialmente do jazz, que é verdadeiramente um mundo à parte. Envolvido em uma aura erudita (que existe no balé) e, ao mesmo tempo, com criatividade intensa (que não é comum à esta dança), Andrew busca adentrar no campo da música não somente tocando de forma perfeita, mas superando as expectativas de seu professor. A cena final do filme, a mais longa, creio eu, é emblemática neste sentido e de tirar o fôlego.

Whiplash, enfim, ganha o espectador com seu estilo de câmera, especialmente fotografia, montagem e edição, com closes nos instrumentos e nas mãos destruídas de Andrew, além do estilo comum também em Cisne Negro de seguir personagens com a câmera. A solidão de Andrew também é retratada, com longas cenas dele sozinho perambulando por Nova York ou tocando a bateria até a exaustão. Além disso, a solidão é vista no ressentimento a incompreensão que sente com os outros poucos personagens da trama,  nas noites de cinema com seu pai e especialmente na cena em que seus parentes contam histórias de "sucesso" de primos, sem reconhecerem a atuação de Andrew na reconhecidíssima banda de jazz de Terence Fletcher. O jazz, de fato, é um mundo à parte, e Whiplash retrata este mundo de forma precisa, lançando um olhar interessante e curioso (para leigos) sobre um mundo musical fechado e, por sua história musical e técnica, maestral.

Cartaz do filme, lembrando cartazes da década de 1950, anos áureos do jazz



quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Relatos Selvagens (Relatos Salvajes, 2014)

Faz tempo que não me impressionava com uma comédia. Relatos Selvagens é uma comédia de humor sarcástico e que, ainda, nos permite uma bela reflexão sobre a vida em sociedade. Algumas críticas que li sobre o filme (não é fácil fazer críticas, é preciso estudar!) falam que ele remonta a personagens que estão "à beira de um ataque de nervos". Isso porque o longa argentino é também produzido pelo cineasta Pedro Almodóvar. Outras críticas falam sobre o estresse do cotidiano e da incompreensão em uma sociedade que beira a "barbárie". Um terceiro crítico comenta que o filme é um belo exemplo de pessoas em situação limite (o chamado transtorno explosivo em Psicologia), como bem demonstrado no filme Um dia de fúria, com Michael Douglas enlouquecendo no trânsito - o qual um dos "relatos" do filme, o que achei mais interessante, se inspira completamente.


 Personagens de Relatos Selvagens
Parei pra pensar um pouco sobre estas análises e lembrei de algumas aulas que tive de América e as leituras de Domingo Sarmiento e José Martí, que discutem os conceitos de civilização e barbárie na América Latina. Sarmiento comentava o que era ser civilizado e moderno em um mundo de transformações rápidas e pautado no progressivismo europeu no fim do século XIX. A América Latina permanecia para ele parada, um exemplo de organização social próxima à "barbárie". Porém, o longa do argentino Damián Szifron não trata apenas de um exemplo latino-americano: as situações limites impostas no filme poderiam acontecer em qualquer cultura e sociedade. Por isso nos identificamos - a "barbárie" demonstrada no roteiro pode ser um exemplo de traços culturais latino-americanos? Sim e não. Poderia acontecer em qualquer lugar, afinal, vivemos em um mundo globalizado, com relações de poder, com um Estado fortemente burocratizado, que pode sufocar todos que minimamente se sentem incomodados com as regras sociais que temos que seguir.

Uma das histórias fala sobre as relações no trânsito - caóticas
Agora voltando a Relatos Selvagens, o longa é um exemplo raro de filme despretensiosos, com  um roteiro excelente, que não cai na mesmice e nos surpreende a cada segundo. Foi um sucesso na Argentina, e pelo jeito está sendo no Brasil também, com sessões lotadas. Foi indicado ao Oscar (o que dá um certo status, não é?) e, claro, a diversos outros prêmios no mundo. Uma característica interessante é que como ele é todo formado por relatos, ou seja, contos, não há um ator principal, apesar de Ricardo Darín ser o grande chamariz para o filme. Afinal de contas, é o Ricardo Darín! Mas ele é apenas mais um personagem de um dos contos sobre as relações humanas modernas.

Ricardo Darín no belo conto sobre o cidadão X Estado
Outra atriz que surpreende é Érica Rivas no papel da noiva Romina, que também tem seu "dia de fúria". Achei, inclusive, durante a sessão de cinema que a atriz estava espetacular, e não deu outra: ao acessar críticas havia elogias rasgados à jovem que deu um banho de interpretação, superando, vejam só, Darín como destaque de atuação no longa (não é fácil!).

Erica Rivas está sensacional como a noiva Romina
O longa conta com diversas sacadas muito interessantes e críticas. Podem perceber que não quero dar uma de spoiler então não estou contando muito. Mas se lembrarmos das nossas revoltas com a burocracia e com o poder público, que homogenizam as situações cotidianas e irritam qualquer cidadão que queira cobrar respostas sensatas do governo, se pensarmos nas loucuras do trânsito e como a falta de "civilidade" e boas maneiras, além da falta de respeito ao próximo que podem levar a rusgas nas estradas, e se pensarmos nas expectativas da sociedade sobre casamento e felicidade a dois, tão maquiada pelos milhares de "selfies" e posts esbanjando felicidade que vemos em facebooks, instagrams e afins (muitos estão longe de ser realidade), podemos nos identificar com o filme e fazer uma reflexão muito positiva da mensagem que ele quer passar. A mensagem, na minha opinião, é que nosso individualismo exacerbado em uma sociedade como a atual esbarra necessariamente no de outras pessoas, o que pode gerar atritos, e com isso vem a violência, o egoísmo, a vingança, a inveja, a raiva e o medo. Todas essas facetas são exploradas em Relatos Selvagens, em uma sacada genial de seu diretor e roteirista, que explora o tema com um humor sarcástico e reflexivo. 

Afinal de contas, como não se indignar com a corrupção, com o egoísmo e com a falta de educação do nosso dia a dia? Como não se indignar com o outro? Na verdade, Relatos Selvagens nos convida a refletir sobre o outro sim, mas também sobre nós mesmos, que muitas vezes vivemos a vida sem parar para pensar sobre a nossa própria conduta. 

O roteirista e diretor Damián Szafrón e Ricardo Darín
Vou terminar com uma reflexão acerca do conceito de modernidade. Como Anthony Giddens pondera de forma muito interessante, a pós-modernidade causa um sentido de desorientação, de "mal estar". Ela nos conduz desgovernada pelo tempo, desconectada do local e das tradições. Ela foge do nosso controle, e nos faz sentir que estamos em uma situação limite. É assim que devemos perceber o nosso mundo - não apenas um local de constantes mudanças e caótico, mas também que temos um papel nessas transformações e precisamos, cada vez mais, refletir como elas afetam a nós e aos outros. Relatos Selvagens é um pouco assim: parece que os personagens estão desgovernados, caóticos, loucos e confusos. E mesmo assim, acabamos nos identificamos com eles.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Boyhood (2014)

O Oscar está chegando e alguns filmes concorrentes começam a estrear nos cinemas nacionais. Na verdade, já faz cerca de um mês que Boyhood estreou mas eu só consegui ver agora. O filme, que conta a história de um menino que cresce sob os olhos do diretor, equipe e espectadores com o passar dos anos, já ganhou os principais prêmios do Globo de ouro e mais uma série de prêmios mundo afora. Boyhood, na verdade,  é um filme sobre o cotidiano e a vida familiar de um menino que se torna adulto, e pela sua originalidade e simplicidade se tornou o grande vencedor de festivais de cinema.

Ellar Coltrane na cena inicial do filme - com seis anos
Já faz muito tempo que Hollywood busca alternativas para melhorar sua indústria, que saturou por um bom tempo após blockbusters ou grandes produções deixarem a desejar no quesito qualidade de roteiro. Em compensação, filmes com assinatura, seja de atores ou diretores, têm se tornado filmes cada vez mais destacados na imprensa e nas críticas, trazendo uma alternativa à falta de originalidade do cinema nos anos 1990. Essa "absorção" de diretores de cinema independente já acontece há bastante tempo - uns quinze anos, e é justamente quando Richard Linklater começa a filmar a história de Mason (Ellar Coltrane), um garoto texano que mora com a mãe divorciada e a irmã mais velha e vive as desventuras de uma infância normal, mas claro, com problemas e descobertas.

Patricia Arquette interpreta - muito bem - a mãe de Mason e Samantha
Richard Linklater é um diretor bastante conhecido devido ao seu primeiro filme de sucesso - independente - e que contou com diversos prêmios em festivais de cinema: Antes do Amanhecer. Antes um filme desconhecido pela maior parte do público, e especialmente "chato" para os padrões hollywoodianos, pois retrata dois jovens se conhecendo em uma viagem na Europa e conversando todo o filme, Linklater começou a se tornar "queridinho"  na mídia após fazer o Antes do pôr-do-sol e Antes da meia-noite (que eu particularmente achei "mais do mesmo") e se tornar justamente um diretor original, vindo de uma corrente de cineastas independentes dos anos 1990. Sua assinatura é fazer roteiros com diálogos intensos e filosóficos sobre a vida, com a simplicidade de duas pessoas conversando num fim da tarde em um barzinho, ou discutindo os rumos da vida em uma reunião de amigos.

A fórmula deu certo, e tornou seus filmes muito mais interessantes que as sequências de explosões ou corridas de carros de concorrentes. É claro que Hollywood não se resume a isso - e hoje os roteiristas da indústria do cinema são disputados constantemente pelos estúdios, que buscam cada vez mais inovação como fórmula do sucesso. E com certeza Linklater foi original e inovador em Boyhood - e por isso merece ganhar todos os prêmios que ganhou até agora com o filme.

Ethan Hawke e Ellar Coltrane já um pouco mais velho

Boyhood conta a história de Mason dos seis aos dezoito anos. É muito interessante ver as mudanças que o menino passa em sua vida e os problemas que aguenta calado, por simplesmente não saber lidar, em cenas cotidianas mas que nos fazem nos sentir como ele, sozinho e amargurado. Separação de pais, falta de compreensão da mãe e da irmã, se mudar e perder o círculo de amizades que conquistou com muita dificuldade e ver a puberdade nascendo, com encontros inesquecíveis mas escassos com seu pai, que é a figura masculina no qual ele se ampara.

Mason e sua mãe - já adolescente
O filme tem sim um roteiro ótimo, que nos envolve na trama e nos faz identificar ou gostar mais ainda dos personagens - a mãe trabalhadora, o menino que tem dificuldades de se relacionar, o pai que "fracassa" ao não ter um emprego dos sonhos ou conseguir sustentar sua família, uma família que constrói seus laços com o tempo, respeito e compreensão. E isso tudo faz parte do cotidiano de tantas famílias, e do nosso próprio cotidiano familiar, que nos relacionamos com o tema.

O longa não tem nenhum momento "auge": ele apenas mostra o crescimento de Mason e seus relacionamentos com o tempo. E é incrível ver como o menino e sua irmã crescem e mudam fisicamente com o passar dos anos. Por outro lado, Patricia Arquette muda também, Ethan Hawke muda também, mas não é nada que não tenhamos visto com boas maquiagens, até porque as mudanças da puberdade são assustadoras, enquanto as da vida adulta vêm com mais serenidade. Além disso, todos viram Ethan Hawke mudar em seus vários filmes feitos nos últimos doze anos e Arquette mudar também em Medium, seriado que protagonizou entre 2005 e 2011.

Ellar Coltrane já adulto - com 18 anos
Boyhood merece ser visto - e merece ganhar todos os prêmios que ganhou. Em uma época em que roteiristas bons e originalidade são difíceis de achar, Boyhood nos brinda com um belo roteiro e uma reflexão de que "a vida não basta ser vivida"; é necessário ter sonhos, aspirações, desejos e motivação. E o longa mostra  que a vida é simplesmente um pouquinho de tudo isso.