domingo, 20 de setembro de 2015

Que horas ela volta? (The second mother, 2015)

Pela primeira vez escrevo o nome do filme em português e em parênteses em inglês. Faço isso com orgulho porque o novo filme de Anna Muylaert, que vem conquistando público no país, só começou a engrossar sua bilheteria após anúncio de ser o candidato ao Oscar de filme estrangeiro, feito dia 10. O longa faz "carreira internacional" desde o início do ano, sendo lançado em vários países com o nome de "A segunda mãe". Além disso, já recebeu prêmios de melhor atuação para Regina Casé, no Festival de Sundance, de crítica e de público no Festival de Berlim e de melhor filme no Festival de Amsterdã. Não dá pra deixar de nos indagarmos porque uma comédia supostamente despretensiosa anda conquistando tanto público lá fora.

Regina Casé como Val, a "segunda mãe" de Fabinho (Michel Joelsas)
Receber tantos prêmios e ser lançado em vários países me deixa um tanto quanto orgulhosa, uma vez que são poucos os filmes nacionais que têm tido sucesso de público no exterior e no país simultaneamente. Mas conquistar público nas salas nacionais, quando o filme tem uma estética inovadora ou uma temática social, também é algo para se comemorar, mesmo que sua fama tenha precedido o público. É interessante entender, também, o porquê disso.

O longa conta a história de Val (Regina Casé), que é a empregada doméstica/babá da família de Bárbara (Karine Teles), uma publicitária ou especialista em moda, cuja profissão não fica claro na história. Val é nordestina, vive no trabalho e visita pouco a filha e a família, com quem conversa via telefone quase todos os dias. Val é o retrato de muitas mulheres que trabalham em casas da classe média alta ou alta em São Paulo e no Rio de Janeiro. E é em São Paulo que encontra um "novo filho", o filho da patroa. Não é à toa que na maioria dos países o filme ganhou o nome de "A Segunda Mãe". É Val quem cuida do filho de Bárbara, Fabinho (Michel Joelsas), quem educa, que é cúmplice dele, que pergunta sobre a vida dele e quem o mima antes de dormir. Val é a mãe que Fabinho não teve.

Uma cena simples e bonita do filme - Val tem um cotidiano fechado.
Pegar um sol no quintal é uma das coisas que ela tem prazer de fazer
Com o passar do tempo, Fabinho cresce e se torna um adolescente amoroso. Pouca coisa muda na vida dela e no cotidiano da casa. Um belo dia Val recebe um telefonema da filha dizendo que ela está indo para São Paulo tentar o vestibular. Sem saber ao certo o que fazer com a filha que conhece pouco, Val conversa com a patroa que diz que ela "é praticamente família", e que a filha pode vir à vontade ficar na casa. Compra até um colchonete para ela dormir no quarto de empregada com a mãe. Quando Jéssica (Camila Márdila) chega na casa, os conflitos começam a ocorrer. E não é só o cotidiano separado dos patrões e empregados mostrados na trama que a deixa interessante, mas o conflito gerado por uma menina adolescente que chega em uma casa e é chamada de convidada, mas pela patroa, é vista como empregada. Essa dinâmica de estabelecimento de papéis claros na casa de Bárbara faz com que surjam diversos problemas, e faz com que Val, a grande protagonista da trama, comece também a questionar algo que para ela nunca foi questionável.

Val e a filha, Jéssica (Camila Márdila), discutindo sobre o uso da piscina
O filme traduz, assim, uma situação social que já vimos ou vivenciamos no Brasil. Não dá pra dizer que não vimos. O conflito de classes na relação de subalternidade que se estabelece no país desde as senzalas e a escravidão, permanece em muitos lares, de forma velada, passivo-agressiva e com muito preconceito embutido. Muito mudou na relação empregada doméstica/patroa? Sim e não. Em muitos lares a mesma relação permanece, de forma velada. Só que nos acostumamos com isso. O filme, na verdade, nos faz ver nossa sociedade. Que história é esse que não podemos lavar um copo, é tarefa da empregada ou diarista? E arrumar a cama, é tarefa também da empregada? Colocar o prato na pia da cozinha, jantar na mesa da cozinha...isso tudo reflete uma situação que todos já vimos: a desigualdade social nas casas brasileiras desde o século XIX, que se desenvolve de forma espacial. E esse é um dos motes do filme, como exemplo, na cena em que a própria patroa de Val deixa claro, após ficar irritada com os "abusos" de Jéssica, que subverte a ordem local: ela deve ficar "da cozinha pra lá, pros fundos da casa".

Val na cozinha - onde a maior parte das cenas é filmada
Que horas ela volta? traz, assim, um interessante retrato do Brasil, um que achamos que já tínhamos esquecido nesse século XXI, mas que existe na nossa sociedade. O forte do filme, porém, não é só a sua crítica social. O outro forte do filme tem nome e sobrenome: Regina Casé. Ela apresenta uma composição de personagem incrível, marcante, contida e forte ao mesmo tempo, um retrato de uma mulher trabalhadora, humilde, isolada em sua vida penosa, que começa a perceber, nas situações e nos diálogos com a filha, que seu mundo poderia ser maior. Val é extremamente empática, é engraçada, e é uma personagem contida, sem grandes explosões. Casé está brilhante - e não dá pra dizer que não conhecemos o potencial dela pra comédias - neste caso, claramente um drama com pitadas de comédia. O elenco de apoio na trama - todos os membros da família de Bárbara, os empregados da casa, a sua filha e sua amiga, também empregada doméstica, estão todos muito bem também. O trabalho de direção está ótimo, a composição, os diálogos e a continuidade da trama, também. Mas quem é a estrela, sem dúvida, é Casé.

A família de Barbara à mesa, esperando Val tirá-la
Posso dizer que o longa é imperdível, e vale muito a pena ser visto. Não só pela suposta concorrência ao Oscar, mas porque precisamos parar de ter aquela velha visão de que o cinema nacional é inferior ao cinema estrangeiro. Faço ainda uma mea culpa: preciso escrever mais sobre filmes nacionais neste blog, e ver mais os filmes nacionais. Acreditem, estamos fazendo escola, e já há muito tempo.




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