quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Relatos Selvagens (Relatos Salvajes, 2014)

Faz tempo que não me impressionava com uma comédia. Relatos Selvagens é uma comédia de humor sarcástico e que, ainda, nos permite uma bela reflexão sobre a vida em sociedade. Algumas críticas que li sobre o filme (não é fácil fazer críticas, é preciso estudar!) falam que ele remonta a personagens que estão "à beira de um ataque de nervos". Isso porque o longa argentino é também produzido pelo cineasta Pedro Almodóvar. Outras críticas falam sobre o estresse do cotidiano e da incompreensão em uma sociedade que beira a "barbárie". Um terceiro crítico comenta que o filme é um belo exemplo de pessoas em situação limite (o chamado transtorno explosivo em Psicologia), como bem demonstrado no filme Um dia de fúria, com Michael Douglas enlouquecendo no trânsito - o qual um dos "relatos" do filme, o que achei mais interessante, se inspira completamente.


 Personagens de Relatos Selvagens
Parei pra pensar um pouco sobre estas análises e lembrei de algumas aulas que tive de América e as leituras de Domingo Sarmiento e José Martí, que discutem os conceitos de civilização e barbárie na América Latina. Sarmiento comentava o que era ser civilizado e moderno em um mundo de transformações rápidas e pautado no progressivismo europeu no fim do século XIX. A América Latina permanecia para ele parada, um exemplo de organização social próxima à "barbárie". Porém, o longa do argentino Damián Szifron não trata apenas de um exemplo latino-americano: as situações limites impostas no filme poderiam acontecer em qualquer cultura e sociedade. Por isso nos identificamos - a "barbárie" demonstrada no roteiro pode ser um exemplo de traços culturais latino-americanos? Sim e não. Poderia acontecer em qualquer lugar, afinal, vivemos em um mundo globalizado, com relações de poder, com um Estado fortemente burocratizado, que pode sufocar todos que minimamente se sentem incomodados com as regras sociais que temos que seguir.

Uma das histórias fala sobre as relações no trânsito - caóticas
Agora voltando a Relatos Selvagens, o longa é um exemplo raro de filme despretensiosos, com  um roteiro excelente, que não cai na mesmice e nos surpreende a cada segundo. Foi um sucesso na Argentina, e pelo jeito está sendo no Brasil também, com sessões lotadas. Foi indicado ao Oscar (o que dá um certo status, não é?) e, claro, a diversos outros prêmios no mundo. Uma característica interessante é que como ele é todo formado por relatos, ou seja, contos, não há um ator principal, apesar de Ricardo Darín ser o grande chamariz para o filme. Afinal de contas, é o Ricardo Darín! Mas ele é apenas mais um personagem de um dos contos sobre as relações humanas modernas.

Ricardo Darín no belo conto sobre o cidadão X Estado
Outra atriz que surpreende é Érica Rivas no papel da noiva Romina, que também tem seu "dia de fúria". Achei, inclusive, durante a sessão de cinema que a atriz estava espetacular, e não deu outra: ao acessar críticas havia elogias rasgados à jovem que deu um banho de interpretação, superando, vejam só, Darín como destaque de atuação no longa (não é fácil!).

Erica Rivas está sensacional como a noiva Romina
O longa conta com diversas sacadas muito interessantes e críticas. Podem perceber que não quero dar uma de spoiler então não estou contando muito. Mas se lembrarmos das nossas revoltas com a burocracia e com o poder público, que homogenizam as situações cotidianas e irritam qualquer cidadão que queira cobrar respostas sensatas do governo, se pensarmos nas loucuras do trânsito e como a falta de "civilidade" e boas maneiras, além da falta de respeito ao próximo que podem levar a rusgas nas estradas, e se pensarmos nas expectativas da sociedade sobre casamento e felicidade a dois, tão maquiada pelos milhares de "selfies" e posts esbanjando felicidade que vemos em facebooks, instagrams e afins (muitos estão longe de ser realidade), podemos nos identificar com o filme e fazer uma reflexão muito positiva da mensagem que ele quer passar. A mensagem, na minha opinião, é que nosso individualismo exacerbado em uma sociedade como a atual esbarra necessariamente no de outras pessoas, o que pode gerar atritos, e com isso vem a violência, o egoísmo, a vingança, a inveja, a raiva e o medo. Todas essas facetas são exploradas em Relatos Selvagens, em uma sacada genial de seu diretor e roteirista, que explora o tema com um humor sarcástico e reflexivo. 

Afinal de contas, como não se indignar com a corrupção, com o egoísmo e com a falta de educação do nosso dia a dia? Como não se indignar com o outro? Na verdade, Relatos Selvagens nos convida a refletir sobre o outro sim, mas também sobre nós mesmos, que muitas vezes vivemos a vida sem parar para pensar sobre a nossa própria conduta. 

O roteirista e diretor Damián Szafrón e Ricardo Darín
Vou terminar com uma reflexão acerca do conceito de modernidade. Como Anthony Giddens pondera de forma muito interessante, a pós-modernidade causa um sentido de desorientação, de "mal estar". Ela nos conduz desgovernada pelo tempo, desconectada do local e das tradições. Ela foge do nosso controle, e nos faz sentir que estamos em uma situação limite. É assim que devemos perceber o nosso mundo - não apenas um local de constantes mudanças e caótico, mas também que temos um papel nessas transformações e precisamos, cada vez mais, refletir como elas afetam a nós e aos outros. Relatos Selvagens é um pouco assim: parece que os personagens estão desgovernados, caóticos, loucos e confusos. E mesmo assim, acabamos nos identificamos com eles.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Boyhood (2014)

O Oscar está chegando e alguns filmes concorrentes começam a estrear nos cinemas nacionais. Na verdade, já faz cerca de um mês que Boyhood estreou mas eu só consegui ver agora. O filme, que conta a história de um menino que cresce sob os olhos do diretor, equipe e espectadores com o passar dos anos, já ganhou os principais prêmios do Globo de ouro e mais uma série de prêmios mundo afora. Boyhood, na verdade,  é um filme sobre o cotidiano e a vida familiar de um menino que se torna adulto, e pela sua originalidade e simplicidade se tornou o grande vencedor de festivais de cinema.

Ellar Coltrane na cena inicial do filme - com seis anos
Já faz muito tempo que Hollywood busca alternativas para melhorar sua indústria, que saturou por um bom tempo após blockbusters ou grandes produções deixarem a desejar no quesito qualidade de roteiro. Em compensação, filmes com assinatura, seja de atores ou diretores, têm se tornado filmes cada vez mais destacados na imprensa e nas críticas, trazendo uma alternativa à falta de originalidade do cinema nos anos 1990. Essa "absorção" de diretores de cinema independente já acontece há bastante tempo - uns quinze anos, e é justamente quando Richard Linklater começa a filmar a história de Mason (Ellar Coltrane), um garoto texano que mora com a mãe divorciada e a irmã mais velha e vive as desventuras de uma infância normal, mas claro, com problemas e descobertas.

Patricia Arquette interpreta - muito bem - a mãe de Mason e Samantha
Richard Linklater é um diretor bastante conhecido devido ao seu primeiro filme de sucesso - independente - e que contou com diversos prêmios em festivais de cinema: Antes do Amanhecer. Antes um filme desconhecido pela maior parte do público, e especialmente "chato" para os padrões hollywoodianos, pois retrata dois jovens se conhecendo em uma viagem na Europa e conversando todo o filme, Linklater começou a se tornar "queridinho"  na mídia após fazer o Antes do pôr-do-sol e Antes da meia-noite (que eu particularmente achei "mais do mesmo") e se tornar justamente um diretor original, vindo de uma corrente de cineastas independentes dos anos 1990. Sua assinatura é fazer roteiros com diálogos intensos e filosóficos sobre a vida, com a simplicidade de duas pessoas conversando num fim da tarde em um barzinho, ou discutindo os rumos da vida em uma reunião de amigos.

A fórmula deu certo, e tornou seus filmes muito mais interessantes que as sequências de explosões ou corridas de carros de concorrentes. É claro que Hollywood não se resume a isso - e hoje os roteiristas da indústria do cinema são disputados constantemente pelos estúdios, que buscam cada vez mais inovação como fórmula do sucesso. E com certeza Linklater foi original e inovador em Boyhood - e por isso merece ganhar todos os prêmios que ganhou até agora com o filme.

Ethan Hawke e Ellar Coltrane já um pouco mais velho

Boyhood conta a história de Mason dos seis aos dezoito anos. É muito interessante ver as mudanças que o menino passa em sua vida e os problemas que aguenta calado, por simplesmente não saber lidar, em cenas cotidianas mas que nos fazem nos sentir como ele, sozinho e amargurado. Separação de pais, falta de compreensão da mãe e da irmã, se mudar e perder o círculo de amizades que conquistou com muita dificuldade e ver a puberdade nascendo, com encontros inesquecíveis mas escassos com seu pai, que é a figura masculina no qual ele se ampara.

Mason e sua mãe - já adolescente
O filme tem sim um roteiro ótimo, que nos envolve na trama e nos faz identificar ou gostar mais ainda dos personagens - a mãe trabalhadora, o menino que tem dificuldades de se relacionar, o pai que "fracassa" ao não ter um emprego dos sonhos ou conseguir sustentar sua família, uma família que constrói seus laços com o tempo, respeito e compreensão. E isso tudo faz parte do cotidiano de tantas famílias, e do nosso próprio cotidiano familiar, que nos relacionamos com o tema.

O longa não tem nenhum momento "auge": ele apenas mostra o crescimento de Mason e seus relacionamentos com o tempo. E é incrível ver como o menino e sua irmã crescem e mudam fisicamente com o passar dos anos. Por outro lado, Patricia Arquette muda também, Ethan Hawke muda também, mas não é nada que não tenhamos visto com boas maquiagens, até porque as mudanças da puberdade são assustadoras, enquanto as da vida adulta vêm com mais serenidade. Além disso, todos viram Ethan Hawke mudar em seus vários filmes feitos nos últimos doze anos e Arquette mudar também em Medium, seriado que protagonizou entre 2005 e 2011.

Ellar Coltrane já adulto - com 18 anos
Boyhood merece ser visto - e merece ganhar todos os prêmios que ganhou. Em uma época em que roteiristas bons e originalidade são difíceis de achar, Boyhood nos brinda com um belo roteiro e uma reflexão de que "a vida não basta ser vivida"; é necessário ter sonhos, aspirações, desejos e motivação. E o longa mostra  que a vida é simplesmente um pouquinho de tudo isso.