sábado, 26 de novembro de 2011

A chave de Sarah (Elle s'appelait Sarah)




Paris, 16 de julho de 1942. Em um dia quente de verão, dois irmãos brincam em casa, quando de repente são interrompidos pelas batidas na porta. A polícia pede que a família Starzynski a acompanhe até o velódromo da cidade, por ordens superiores. Já acostumada com a atitude da polícia e amedrontada, a mãe chama os pequenos e encontra apenas Sarah, de dez anos, que esconde o irmão Michel em um armário com medo que a polícia o leve. "Irei voltar pra te buscar", diz Sarah baixinho ao trancar a porta do armário de roupas com o irmão junto, guardando a chave na camisola. Após sair de casa, Sarah e sua mãe se deparam com seu pai, que as acompanha ao velódromo de inverno da cidade. As cenas que se seguem são de agonia e terror. O antigo velódromo de inverno de Paris (hoje Ministério do Interior), comportou cerca de treze mil pessoas, homens, mulheres e crianças judias que, sem opção, se enfileiravam nas arquibancadas e permaneceram por dois dias enclausurados no lugar fétido e quente. Quem não se suicidou ou adoeceu, partiu de lá para o campo de concentração de Drancy, para depois ser enviado a Auchswitz e nunca mais ser encontrado.

Julho de 2009. Julia Jarmond, uma jornalista americana radicada na França, decide fazer uma reportagem relembrando a prisão em massa de judeus na França, em 1942. Ao entrevistar uma senhora que vivia em frente ao antigo velódromo, Julia pergunta : "como foram aqueles dias?" "Horríveis" - responde a mulher - "Nõs não podíamos fazer nada. A situação se tornou ainda pior com o passar dos dias". "Por quê? Por causa dos gritos?" - questiona a jornalista - "Não, por causa do mau cheiro que saía de lá, insuportável. Estava muito quente naqueles dias. Não conseguíamos ficar de janelas abertas".

A partir dessas duas realidades, o filme A chave de Sarah conta a história de duas personagens que se encontram após uma busca frenética de Julia pela verdade: a verdade sobre o que ocorreu naqueles dias de verão em 1942, a verdade sobre a família judia que habitou o antigo apartamento da família de seu marido e a verdade silenciosa que permanece sem muitas explicações na França: a memória sobre o apoio de franceses e do governo ao nazismo durante a Segunda Guerra Mundial.

A Chave de Sarah é um filme complexo pela verdade que ele quer mostrar; e pelo que foi encoberto silenciosamente pela memória de muitas pessoas que vivenciaram o holocausto e que se recusaram, até hoje, a falar sobre o que viram ou o que fizeram. Sarah, a menina título do filme, tinha apenas dez anos quando foi tirada do seu estado brincalhão e inocente, para conhecer os horrores da guerra, da morte e da violência.

Julia, uma cidadã americana vivenda na França moderna, tenta entender de perto o que de fato ocorreu, e acaba descobrindo o envolvimento da própria família no acontecimento que permanece esquecido por muita gente no mundo inteiro. Confesso que nunca tinha lido nada sobre o acontecimento - e isso porque sou professora de História, então deveria saber alguma coisa. Porém, a busca de Julia sobre a verdade de Sarah e sua família se torna a busca por uma verdade: a compreensão e reconhecimento do erro que ninguém quer lembrar.

A luta pela memória esquecida é o mote do filme, que em flashbacks, dá uma vantagem ao espectador, que desde o início já sabe a história de Sarah e sua família, enquanto Julia desvenda aos poucos o que ocorreu. Sarah, desesperada por ter deixado seu irmão preso no armário reza para que ele seja achado e se agarra à sua chave, tentando de todos os jeitos fugir e salvá-lo da situação em que o colocou - que, na sua inocência, seria uma forma de proteção. Julia busca desesperadamente a verdade por trás da compra do apartamento da família de seu marido, que pertencia à família Starzynski antes deles se mudarem para lá. Com a reforma do apartamento, a jornalista se depara com indícios de que algo errado aconteceu lá, e por isso sai em busca da verdade.

Os conflitos internos de Julia, que se vê em uma situação difícil com o marido por querer uma gravidez indesejada por ele, contrasta com os conflitos de Sarah (a pequena atriz Mélusine Mayance, excelente no papel), que se arrepende e se angustia em sua jornada para salvar seu irmão, por ter sido inocente e por o ter colocado naquela situação.

Dirigido por Gilles Paquet-Brenner, e baseado no best-seller de Tatiane Rosnay, A chave de Sarah é um filme instigante, bem construído, delicado e ao mesmo tempo forte, que se determina a revelar aquilo que nós escondemos de todos: angústia, medo, arrependimento e desilusão, sob dois pontos de vistas. O filme vale por si só pela atuação de Kristin Scott Thomas e Mélusine Mayance, que agarram seus papéis com todas as forças, delicadamente e, ao mesmo tempo, impactante.

Quanto ao aprisionamento e tortura de famílias judias que ocorreu naquele verão de 1942 na França, cabe a todos nós lembrarmos, e divulgarmos, para que este massacre não fique esquecido na História. Certamente não deve, mas cabe a nós relembrarmos constantemente algo que não queremos repetir na História.

sábado, 19 de novembro de 2011

A pele que habito (La piel que habito)




Vi recentemente o novo filme do Pedro Almodóvar, A pele que habito, com Antonio Banderas, Marisa Parede e Elena Anaya. Gostei muito, explicarei por quê.

A pele que habito é o novo filme do diretor que segue uma linha bem diferente dos seus últimos longas, muito mais dramáticos e sentimentais do que este. Este é um suspense que chega a um ápice um tanto quanto chocante, recheado de cenas enigmáticas e de sexo, é claro, que fazem o espectador sentir o lado mais vil do ser humano e mais apaixonado também, na pele da personagem de Antonio Banderas.

A história do filme já começa com um suspense, um enigma, que é quebrado ao longo da trama. O cirurgião plástico Robert Ledgard (Banderas) tenta criar uma pele perfeita, que não sofreria ações do tempo e queimaduras. Viúvo e fechado para o mundo, Robert mantém em sua antiga clínica, agora sua residência, uma paciente, cobaia de seus experimentos. Ele vê Vera (Elena Anaya) como sua obra prima. Defensor de novas técnicas de transplante de pele, as quais são proibidas em humanos, Robert esconde em sua grande mansão este segredo: a habitante que sofreu inúmeras intervenções cirúrgicas e que também é a personificação da sua mulher, morta de forma trágica.

O enredo se desenvolve na tentativa do espectador de descobrir, com os constantes flashbacks, de forma pouco linear, quem são essas personagens, se Robert é um grande benfeitor da humanidade, criando uma nova técnica que poderia restaurar vítimas de queimaduras, ou se ele é um crápula que mantém uma paciente como cobaia para fins puramente pessoais e egoístas. Se vocês acham que este é o grande segredo da trama, estão enganados. O filme dá voltas e voltas até você sair da sala "atordoado" com a eloquência da trama, com a relação conflituosa das personagens com elas mesmas, e com a capacidade transformadora do ser humano, como na maioria dos filmes de Almodovar.

Baseado no livro do escritor francês Thierry Jonquet (Tarântula), a ficção, o terror e a mistura de elementos de uma personagem embrutecida pela tragédia (Doutor Robert) e de uma outra, que devido a circunstâncias só esclarecidas no decorrer do filme, se aproxima de Robert, se tornam verdadeiras bombas relógios para o espectador, que espera ansiosamente a resolução do suspense, a explicação para tudo o que ocorre, que se deleita ainda mais com as pequenas dicas e detalhes que o diretor apresenta para desenvolver sua história.

O filme é uma adaptação minimalista, e tem a cara do diretor. Sim, ele é um filme autoral, mas qual filme de Almodóvar não é? Me lembrou muito filmes do início de sua carreira, da década de 1980 na verdade, enfáticos, fortes, com cena após cena mostrando algum movimento brusco, algum elemento forte, uma cor que se sobressai, um diálogo seco e emblemático, cenário marcante, que têm tudo a ver com a estética do diretor.

Li uma crítica (se não me engano do Rubens Ewald Filho) em que o autor dizia que Almodóvar melhorou com o tempo e, por conhecer melhor a estética do cinema, como dirigir os atores, posicionar a câmera e conseguir o enquadramento perfeito, consegue, cada vez mais, se superar. O diretor desenvolve sua trama de forma muito enérgica, e por isso, brilha por trás da mesma. Consegue se sobressair por fazer algo absolutamente diferente do que costuma fazer e, ao mesmo tempo, com elementos comuns e o mesmo impacto que costuma deixar registrado nas telas.

Não dá para contar muito sobre o filme, senão ele fica sem graça. E quem sou eu para contar final de filme. Só recomendo que assistam e depois, se puderem, postem seus comentários, pois cada crítica que li tem um ponto de vista diferente sobre a trama, e sempre interessante. Descreveria o longa como "gutural", outros o descrevem como drama psicologizante. Mas quem sabe, ele apenas lida, mais uma vez, com sentimentos de paixão, ódio, vingança, angústia e sofrimento inerentes ao ser humano, sempre tão bem mostrados pelo diretor? Essa capacidade de fazer refletir e, mais importante, sentir, é algo absolutamente normal no universo do Almodóvar - para nossa felicidade.